Carta dos curadores
Como constituir uma história viva de confluências entre os rios que foram, os rios que são e os que ainda serão? Entre as pessoas, humanas e não humanas, que habitam seus leitos, bebem suas águas, vivem suas vidas com e nos rios? Como compor encontros simétricos ou horizontais entre perspectivas diversas e em diferentes suportes e formatos, envolvendo indígenas, filósofos, cientistas, ribeirinhos, designers, escritores, ambientalistas, quilombolas, artistas, arquitetos, advogados, pesquisadores, lideranças comunitárias e ativistas? Como convocar, a nós mesmos e a outrem, a participar das formas plurais de pensar e viver os rios?
Como nomear um emaranhado de encontros, diálogos, filmes, obras visuais e performances, cartografias, cantos, histórias contadas reunidas em uma plataforma online de amplo acesso sobre as três principais bacias hidrográficas de Minas Gerais, nossos territórios fluviais – São Francisco, Rio Doce e Jequitinhonha? Como ensaiar a coexistência efetiva e afetiva entre outros modos de viver e se relacionar no espaço, com os rios e demais seres com quem habitamos neste planeta Terra (que é tão planeta Água e também é Gaia)? Como posicionar-nos diante da tarefa urgente e fundamental de nos fazer pensar (o que é também nos engajar) sobre formas de “sustentar o céu” e refluir os rios para adiar o fim de tantos mundos em um planeta em iminente colapso?
Se Ailton Krenak propõe que projetemos paraquedas coloridos para adiar o fim do mundo em queda livre, quais possibilidades seremos capazes de arregimentar para estancar tantos mundos que se esvaem, que se barram, que se secam, se assoreiam, se extinguem? Perplexos com a canoa furada que estamos construindo, abandonaremos de vez o barco ou negociaremos coletivamente contra a corrente, com o vento, com o Caboclo D’água e com a própria canoa modos possíveis de aportar numa terceira margem?
Minas é a terra que mostrou ao país como morre um rio, com o rompimento criminoso da barragem do Fundão em 2015 que despejou no rio Doce um mar de lama tóxica. A mineração que dá nome ao estado continua sendo uma ameaça que pesa sobre os rios, mas está longe de ser a única. Desmatamento, poluição, monocultivos, urbanização extensiva, barragens são apenas algumas das pressões que põem em risco o futuro dos rios e a própria ideia de um futuro, que não haverá sem rio algum. Frente à crise climática e ambiental, nessa época geológica que leva a marca humana – nem todos humanos, é certo –, o Antropoceno, urge repensar tudo e desfazer muitas coisas, ouvir gentes de todas as espécies, recusar a supremacia humana como certeza e valor, descolonizar e contra-colonizar a história no presente, metamorfosear a destruição em cuidado e o descaso em apreço, inverter os mapas e inventar outros manuais de navegação rumo a uma ecologia fluvial da vida.
Minas é também a terra dos rios gerais, do Opará para os Pankararu e demais povos indígenas que habitam as margens do São Francisco já rumo a sua foz; do Jequi, como os ribeirinhos se referem afetivamente ao Jequitinhonha; do Watu, o Doce avô do povo Krenak que milenarmente habita suas margens (e habitava sua floresta). Relação de parentesco viva que enlaça, aproxima (ou enreda) seres como rios, pedras e montanhas (a serra Takukrak que tem nome e personalidade Krenak), ainda que jamais assim concebidos pela modernização implacável e desvitalizante, que distancia oportunisticamente humanos e natureza para conceber rios e demais seres como recursos, matérias, commodities.
Mas essa não é a única narrativa possível. E um estado de Rios Gerais, mais do que uma especulação necessária, é também uma “proposição cosmopolítica” para abrir o mundo, expandir a política com os todos os seres viventes e reinventar os territórios – tanto os terrenos quanto os imaginários –, a partir das bacias hidrográficas e dos ciclos das águas. Um devir rio no qual seres e rios se confundem para criar condições de habitabilidade e lutar pela existência.
Mais do que reunir a perspectiva dos humanos que vivem com o rio, do rio, para o rio, esta proposição fluvial quer confabular sobre dar voz aos próprios rios, aos peixes e outras criaturas que nele vivem, às matas ciliares e a todos os seres em suas vizinhanças, margens e barrancos. Propõe-se como um remanso de permanências e devires, sempre suscetível e aberto à confluência com outros seres e rios. Pretende reimaginar a própria ideia de rios como seres, organismos, sistemas vivos, para admiti-los como sujeitos que têm agência, direitos, se relacionam socialmente com outros seres e contam histórias: Seres-rios.
Bernardo Esteves
Júnia Torres
Marcela Bertelli
Wellington Cançado
Curadores